terça-feira, abril 01, 2003

O APARELHO
Parte 1: O aparecimento da televisão


Quando a televisão apareceu para mim foi naquela idade em que me é difícil lembrar das coisas com precisão. Mas hoje em dia, quando vejo imagens - na televisão e da televisão - dessa época, é como se, de repente, deixasse de sofrer dessa amnésia da infância e pudesse descrever de novo o tempo e o espaço em que esse trecho da imagem me surgiu pela primeira vez. É esse o maior dos grandes poderes que a televisão possui: o poder da imagem. Um poder que não lhe é exclusivo mas que se reparte pelos seus ancestrais mais próximos: a fotografia, o cinema, que já o tinham herdado das artes plásticas. E se esse poder existe em todos esses meios difusores da imagem, a televisão é o que melhor utiliza uma característica própria da imagem que é a rememoração. A fotografia utilizou-o como produto de venda quando adquiriu um estatuto universal pela facilidade do acto de fotografar, o favorecimento de poder ser utilizado pelo público não especializado. Quem não se lembra do já usado slogan da Kodak.

Eu consigo, após ser privilegiado com essas recordações, reescrever a minha história que já havia esquecido, a tal amnésia da infância. Um exemplo: no outro dia, revi um velho anúncio publicitário a um refrigerante - Larangina C - e num ápice, como quando se deita ao chão uma pedra de dominó sobre as outras para as vermos cair sequencialmente, assim foram surgindo as ideias mais esquecidas da minha infância. Até a televisão ter aparecido para mim, esse poder da rememoração estava todo entregue à fotografia. E se a fotografia consegue fazer recordar - como o anúncio da Kodak - o seu poder é limitado a uma imagem, a uma acção, a uma cena. Tem o valor da unicidade, uma aura como disse Walter Benjamin, e voltando à ironia, é essa unicidade do tempo e do espaço em que está inserida pelo click na máquina fotográfica, que torna limitado esse poder da rememoração. A televisão, por sua vez, preenche um espaço mais amplo de visionamento e a repetição é um adjectivo que se enquadra perfeitamente na leitura televisiva. Não só no espaço publicitário, onde essa repetição não é apenas diária, mas ela mesma é pródiga em repetir todos os géneros de programas. A televisão faz-nos esse mesmo convite à rememoração como um trunfo. Um trunfo que se institucionalizou numa função. E não está aqui em causa nesta comparação a estrutura própria a cada um dos meios, não está em causa o facto de a televisão ser uma sequência de fotografias, não é por isso que a fotografia tem um poder de rememoração inferior ao da televisão, essa limitação da fotografia vem da própria função pragmática de cada um desses dois veículos difusores de imagens. Porque, na mesma linha da televisão, o cinema, é uma sequência de fotografias, e ele próprio não tem esse mesmo poder. Ou já o teve, no tempo em que o cinema também tinha um carácter documental e informativo (o documentário e as Newsreel, hoje em dia é a televisão que nos evoca à rememoração do cinema. Quando o cinema deixa de ser comercializável, é a televisão que o comercializa.

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