domingo, abril 27, 2003

Era eu contigo
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Era como se o mundo, todo ele curvo, se moldasse no canto do meus olhos. E os meus olhos azuis, pintados no reflexo do mar, ao dobrarem-se, fechavam-se na cegueira tingida de uma noite interior. Era no interior do meus olhos que o mundo se juntava, a convergência de pontos dispersos, no mesmo ponto onde eu te fundia com o mundo. Não havia nada para além de nós dois, nós os dois e a natureza, numa união proibida. A natureza do vento que sopra, que sopra sobre o mar, e o mar que fustiga a praia, que espalha a areia num rodopio pelo ar, a areia que por fim nos vem magoar como agulhas. A mesma areia gelada, onde sentados sob as nuvens cinzentas faziamos projecções de um futuro que nunca viria da forma que o viamos. O tempo fazia cócegas na barriga como uma fome de ter-te que nunca fugia da minhas mãos, nas minhas mãos que abraçavam as tuas, tão frias do ar que nos castigava com as suas lâminas de gelo pontiagudas. Era o tempo que se ia, e ia embora com ele o sol, o sol e também a luz que ele nos dava, que nos tingia a pele de um laranja descarregado no fio mais fino do horizonte. O horizonte como pano de fundo de histórias, de sonhos que tu contavas, sonhos que tu vivias comigo ainda nós os dois acordados, ainda adormecidos um no outro, nos braços um do outro onde o conforto do abraço defrontava a natureza e a sua rudeza. Era a pele que escondias, a tua pele que eu escondia com a minha pele, e eu exposto como uma muralha que perdura, lutando apenas com o auxilio do teu conforto, dos teus beijos, fogo de vigilia de noites em claro. Eras tão menina nos meus braços.

Era eu de novo contigo num outro ponto do mundo, eu e tu, meu mundo, sentados numa rocha de pedra fria e redonda, redonda como os teus seios macios e dormentes e muito escondidos na palma carinhosa da minha mão. A minha mão que desenhava uma rota sem destino, percorrendo o teu corpo em silêncio, no silêncio grandioso da montanha reservada para nós. Por vezes o estremecer do teu corpo arrepiava-me, o frio vinha, subia pela pele bronzeada e desaparecia rapimente sem rasto. Eu perseguia a tua pele ainda mais bronzeada, ainda mais quente, ainda mais quente que o sol que se pendurava sobre nós. Fazia-te cócegas que se desprendiam num riso teu, que acordavam os sonhos escondidos debaixo das pedras escaldadas de uma tarde quente de verão. Outras vezes contava-te histórias que te adormeciam, que te embalavam no berço das fantasias, no berço das palavras onde construia mundos mágicos e de sonho. O sonho de te ter em paz, tu dormente nos meus braços dormentes, nós escondidos do mundo, escondidos por detrás da rocha de pedra vigiados pelo sol de um só olho. E eu que pelos meus olhos percorria a escultura do teu corpo, o teu corpo de pele suave, com a suavidade da tua juventude apesar dos dias longos que viviamos misturando a pele um do outro na saliva dos beijos. A tua boca percorria as palavras de mansinho, na mansidão de uma montanha reservada só para nós, fazendo eco das minhas palavras que se sobrepunham às tuas num unissono sibilar, fino e estridente, como o assobiar do vento a atravessar o choupal. Tu atravessavas o meu corpo, o meu corpo atravessa o teu, e ficavamos assim até virem as estrelas render o sol.

Eu era contigo, os dois juntos a banhar os pés no rio de água fresca, a água a escorrer por entre os dedos desnudos, a escorrer o tempo num passatempo de lassidão. Eu sentado sobre a relva verde e humida a atirar pedras redondas, fazendo circulos que se desfaziam na corrente, nos redemoinhos que levavam a nossa vida. Tu deitada no frio e humido desconforto da relva a pensar na nossa vida, a levar os nossos sorrisos na espiral de um descontentamento que não sabiamos onde nascia. Era o silêncio das palavras que se perdia no barulhos dos ramos agitados ao vento, das águas agitadas da cascata, era dos ramos agitados que se desprendiam as folhas, as folhas que formavam um manto de matéria seca, matéria que se desprendia perante os nosso olhos no rodopio do vento que leva o tempo. Era Outono de novo um ano depois, um ano passado na sequência dos tempos, na sequência dos acontecimentos que nunca previmos vir a acontecer. Eram sonhos que se desprendiam das árvores, era a chuva que principiava nas nuvens, que se precipitava no silêncio ferido pelos ramos despidos dos choupos, a chuva que se infiltrava nos olhos, que marcava as faces tal qual o rio marcava a paisagem. O rio levava o tempo na corrente agitada e caia no abismo da cascata transformando-se no vapor onde tudo recomeça. Onde tudo renasce.

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