quinta-feira, maio 08, 2003

Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral
comentário a Nietzsche
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A arte assenta na inexactidão do ver. A arte como imagem; imagem não necessariamente visual mas também auditiva, táctil, gustativa ou sensorial, e para não faltar um único sentido, também olfactiva. O mundo interior está pejado de imagens. A própria palavra, seja ela transmitida via oral ou via visual (a escrita), é portadora da imagem. A metáfora da coisa-em-si. As imagens são pensamentos originais, a aparência. E, se interiores, as aparências, elas provêm do ser-em-si e como tal transfiguradas pela percepção individual. E, de indivíduo para indivíduo, a percepção da realidade, a natureza que nos rodeia, é variável, distinta porque única, individualizada. Duas pessoas não podem ter as mesmas percepções, elas não podem coincidir no mesmo espaço-tempo. A visão do mundo é infinita, porque o ser que conhece, que perfaz a operação aritmética de transformar a coisa-em-si em imagem cognoscível, em conceptualizar o mundo, contêm em si a possibilidade de um número infinito de interpretações. Essa metaforização do mundo, a metamorfose da coisa-em-si em objecto, é o conceito: a imagem convencionalizada. Esta convencionalização permite a comunicação, a teórica proliferação de verdades. As verdades são apenas imagens da imagem original, mas sempre limitadas em relação a esta. Elas não são tão abrangentes, o vermelho é vermelho, o azul é azul, mas dentro do vermelho existe uma grande variedade de tons e o mesmo para o azul. As nossas verdades são conceitos. A uma identidade corresponde um nome, um conceito. Ou seja, o nosso pensar é um denominar, um nomear. Um conceito é uma generalização de particularidades pertencentes a uma identidade distinta de outra identidade. Somamos os elementos em grupos de quantidades e afastamo-nos das suas qualidade de espécie. Uma folha é um conceito para uma identidade especifica mas não nos dá a informação das suas qualidades. Quantas formas pode ter uma folha? Se pedíssemos às pessoas para desenhar uma folha, obteríamos uma quantidade enorme de diferentes tipos de imagem desse conceito, cada uma com as suas propriedades, qualidades diferentes. Por outro lado, se arrancássemos uma folha de uma árvore e a colocássemos à frente de vários indivíduos e perguntássemos que objecto era aquele a resposta seria, creio que invariavelmente, uma folha. É a antropormofização do conceito, mas não abrange a essência da coisa-em-si. O acto de partirmos de um conceito e de recriarmos outra vez uma imagem desse objecto é uma relação estética, um acto criativo. A libertação às subordinações, às delimitações; a criação de um mundo que se opõe ao outro mundo, o das primeiras impressões. A verdade, a imagem do conceito convencionalizada, é uma herança de numerosas gerações de homens e que enfim aparece no género humano sempre na mesma ocasião (...) da mesma forma, um sonho eternamente repetido seria sentido e julgado realidade pura. A partir desse momento referimo-nos ao objecto sempre de modo idêntico, convencionalizado pelo processo tautológico. É a mentira do conhecimento. É a ilusão da vida. Pela razão, pois é o intelecto que se toma ao serviço da vontade de viver. As verdades tornam-se as ilusões que o homem se esqueceu que eram ilusões. A realidade apreendida pela razão não é verdadeira. As designações e as coisas coincidem? Não. Porque uma designação não cobre a abrangência das propriedades do objecto que lhe é inerente. A veracidade habitual, a convencionalizada, não passa de uma máscara sem consciência da máscara. O acto de mentir é a inversão, a adulteração, ou substituição voluntária das designações, um outro uso das convenções. O mentiroso faz uso das designações válidas, as palavras, para fazer com que o irreal apareça como real. O acto de mentir é um acto estético, é o maior prazer, porque sob a forma da mentira, diz a verdade de uma forma perfeitamente geral, até porque os nossos instintos de verdade assentam no fundamento da mentira (...) É um jogo com aquilo que é sério como quando o actor desempenha o papel de rei de uma forma mais real do que a realidade. Quanto mais próximos estivermos das qualidades próprias do conceito quando convencionalizado mais próximos estamos da veracidade, e ao mesmo tempo, mais próximos da mentira da realidade. Porque a realidade não possui características de padronização, ela está carregada de pormenores que fogem aos limites dos conceitos. Mas o homem precisa da verdade, porque é o seu sustentáculo da vida, é dai que lhe nasce o instinto da verdade, a necessidade de dizer isto é vermelho, isto é frio. É a racionalização da visão (no sentido amplo de recolha de imagens), o acto acomodado. O homem esqueceu-se de si como sujeito de criação artística e assim vive com algum repouso, segurança e coerência, pois deixa de ter consciência da inacessibilidade do conhecimento das coisas-em-si mesmas e de que foi ele que criou todos os conceitos, por crer que eles são a verdade em si. Se saísse desta crença deixaria de ter consciência de si. É que a arte despedaça os tecidos dos conceitos. A arte é a inexactidão do ver. E essa inexactidão é deliberada, consciente. É a ruptura com os códigos preestabelecidos, é a alegria de mentir, de romper com as verdades institucionalizadas. A arte é transgressão. E fá-lo de modo intuitivo, o artista é o homem intuitivo ele toma como real a vida disfarçada em aparência e beleza, é o lado de Dionísios. Na arte, todo o existente é transfigurado, não apenas o belo no sentido restrito do termo, mas também o horrível, a fealdade, tudo o que há de terrível na existência brilha com a luminosidade da transfiguração. Na arte, o fundo original do ser encontra-se a si próprio. O acto estético e criativo é o retorno às verdades primeiras, o retorno às verdades primeiras, o regresso às primeiras impressões sobre o mundo, é a destruição das verdades convencionalizadas. É a redescoberta do ser-em-si, o confronto do ser com a realidade que o envolve, a pulsão de uma energia dionisíaca portadora da alegria de acordar das crenças. É a inexactidão do ver, ou melhor, a verdadeira visão do mundo da individualização, da interpretação, da percepção pessoal; a arte vem de dentro, do instinto. A arte é a mentira do mundo, mesmo quando se quer parecer com ele. É a alegria de mentir, pois não há arte sem mentira.


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