Novembro
para a Bébé
Não sei porque chamo janelas aos teus olhos e portas ao teu sexo, não sei. O livro que te escrevo é uma mansão com imensos quartos vazios onde as palavras se vão deitar. Escrevo a nossa história em textos que tu rescreves por achares que não te compreendo. Dizes que penso saber tudo mas que estou muito longe da realidade que dizes também não conhecer. Eu só quero pegar no barro lamacento das nossas vidas e ser o artífice que o transforma. Não sei exactamente em quê nem em que sentido. A textura das palavras não tem de ser um caleidoscópio, toda a acção não tem necessariamente de ser um filme, até porque há momentos que não deviam ter banda sonora como o nosso primeiro beijo entre as buzinas estridentes de dois camiões cisterna, comentas tu. Foi mais marcante assim, rematas. Eu não ligo, e continuo a edificar o palácio do teu corpo com as suas janelas negras, o telhado amarelo com telhas curtas como erva seca e amarela espetada ao sabor do vento, as paredes caiadas de um branco luminoso e acabo com a descrição das portas trancadas. Tu riscas a última palavra que substituis pelo termo seladas. Eu olho para ti com ar incrédulo mas tu sorris e abanas a cabeça confirmando o que escreveras. As palavras continuam a chegar como convidados de uma grande festa que nós, anfitriões da mansão do nosso livro, recebemos cordialmente. Expulsas sempre os meus convidados que achas indesejáveis com um ar arrogante de dona de casa zelosa. Às vezes falo de ti, embora tu nunca te refiras a mim de nenhuma maneira. A história é tua e já te expões o suficiente, dizes tu. Gosto dos teus beijos misturados no vapor da madeira e do álcool do vinho do Porto. Descrevo o momento em que te disse amo-te pela primeira vez na minha vida de uma forma totalmente fantasiada. Tu riscas tudo com uma violência que até fura o papel. Encostas-te à janela e ficas a olhar para um ponto de fuga que eu não consigo perspectivar. Temos estes momentos em que andamos perdidos até eu te encontrar. Este momento até é daqueles que têm banda sonora, mas eu desligo a aparelhagem. O silêncio pronuncia a discórdia. Sabes que eu o fiz de propósito, dizem-me os teus olhos reflectidos no vidro. Sempre soubemos utilizar os espelhos, uma recordação que o teu sorriso mimetiza o instante em que os teus olhos se enquadraram nos meus no dia que nos conhecemos. O silêncio perdura e só o ruído do meu gesto de mudar de página irrompe como uma trégua. Rescrevo o momento riscado. Desta vez conto como tudo foi: a despedida à porta de tua casa; o momento em que me esquivei a dizer algo; a tua insistência para eu dizer o que me tinha apetecido dizer; eu a dizer que não era nada, que era uma asneira; descrevo a maneira como desci as escadas, a raiva que demonstrei contra as inocentes flores. Conto os meus pensamentos enquanto acendia um cigarro ainda à porta de tua casa, descrevo a minha covardia toda sem a menor piedade de mim próprio. Descrevo o momento em que me abraçaste por trás com o teu corpo quente colado ao meu, as lágrimas que escorreram mostrando o desconforto que sentia comigo mesmo, e o momento em que me rodaste para te enfrentar, contigo a lavar-me o rosto com os teus beijos fingindo serem toalhas. Faço uma pausa na escrita. Acendo um cigarro lavado no trago amargo do Porto por falta dos teus beijos. Vejo a nossa mansão do texto em ruínas após as tuas demolições violentas, debruço-me sobre o ultimo projecto que as minhas palavras anunciavam. A recordação do momento deixa-me fechado num monólogo interior. Fecho os olhos nas palmas das mãos como se fizesse um cinema com o filme das recordações só para mim. Tu vens ter comigo, enrolas-te nas minhas costas debruçando o queixo sobre o meu ombro. Espreitas o momento vivido através da janela do tempo que as minhas palavras abrem. Guardas-me as mãos no cofre forte das tuas. Continua, pedes-me. Não consigo. Não sei porque me custa tanto abandonar-me a alguém, o mesmo se passa quando tenho de descrever o abandono. Tens medo, dizes-me roubando os pensamentos mais íntimos. É como se te entregasse a minha vida. Tu percebes, dominas-me e por isso tudo isto me custa como se me fosse perder a mim próprio. Tu percebes tudo, sempre percebeste. És esperta como o ar que tudo preenche. As tuas caricias incitam a segurança que sabes que me falta. Estás dentro dos meus receios como um bálsamo, libertando um perfume intenso de tranquilidade. O colete de forças do teu desejo domina-me. Despe-te pedes tu, libertando-me as mãos das algemas das tuas. Eu pego na caneta, na folha, e escavo no mais fundo da alma, as razões e sentimentos que me perturbavam, que me condicionavam naquele momento, no segundo anterior a dizer que te amava. Tu acaricias-me as costas, pele com pele debaixo da camisa. Massajas-me a alma com o unguento da segurança. Eu descrevo tudo. As palavras vêm de dentro como o tijolo e a argamassa da nossa mansão de texto. Pinto paredes, destruo paredes. Faço aberturas onde não as havia, janelas para a alma. Descrevo recantos que são passagens secretas para sítios grotescos, tão próximos dos pesadelos. Mostro-te os terraços que dão para o céu de sonhos, e jardins que são o paraíso reinventando. Sou mais do que uma alma despida, sou a pele e o osso das palavras. O sangue pulula no interstício das linhas, e tu bebes a sangria que derrete na avalanche dos parágrafos. Paro de escrever quando a tua mão acaricia o meu sexo e os teus lábios anunciam a ordem no lóbulo trémulo do ouvido. Chega. A minha alma soluça baixinho, a água presa na barragem das pálpebras prestes a galgar o dique. A mansão do texto é, agora, apenas um auto-retrato meu. Eu precisava de ter a certeza, agarrar os teus medos e mistura-los nos meus, e fazer disso a massa consistente que proteja a nossa mansão das agressões exteriores, tinha tanto medo de que não fosses capaz de o fazer e libertar-me também das minhas inseguranças. Escreves tu no final, como um grande plano de uma flor no nosso jardim de paisagens interiores. Os corpos deitam-se empurrados pela aragem do espirito, as portas da alma abertas fazendo a corrente de ar violento libertar o pólen do desejo, e as portas do corpo que deixaste arrombar quebrando o selo do lacre. Foi quando dissestes que me amavas e eu o repeti fazendo eco do meu amor sem esforço algum. Tu pegaste fogo à mansão do texto libertando-me do inferno das meus medos com o fogo do teu desejo. Agora tenho-te para sempre na memória, segredaste-me. Eu também.
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