segunda-feira, maio 19, 2003

O vidro da saudade

Às vezes parece que é tarde, mas não é. Que não fizemos as coisas que devíamos ter feito, mas fizemos. O que importa onde? Se no papel foi feito, ou deixado prontinho dentro da cabeça, ou mesmo só a bater no coração como uma cantiga que faz falar o cálido sonho. E depois, apeteceu-lhe dizer que não se perde um só beijo de ternura, sem pressas, e sem querer demasiado. Tinha sempre um lugarzinho no seu coração para a sua saudade, mesmo quando o coração estava pequenino e mal tratado. Era a sua doçura. Nunca lhe escreveu uma carta. Mas deixou muitas frases escritas, às vezes várias vezes ao dia. Outras vezes ficavam só no pensamento até que o vento do esquecimento que soprava todas as noites as apagasse. Houve mesmo muitas que voaram, umas para longe mas outras ainda as conseguiu apanhar. Tinha ideias para contar-lhe a ela, mas eram ideias soltas e não faziam uma história, por isso ele nunca mais pegou numa caneta. Talvez daquela vez em que esperava por um comboio, num café, a tomar café, nesse café que também tinha bolos que ele também comeu. Numa manhã fria e de chuva que lhe molhou os cadernos, que quase diluiu a tinta sabichona das suas ideias, a chuva que lhe molhava os olhos, que faziam parecer que chorava, até podia ser uma saudade se fossem lágrimas, ou se as pessoas lessem o que ele escrevera, uma carta à sua amiga, não muito diferente da rapariga, que sentada ao seu lado, já no comboio, na carruagem aquecida, olhava de soslaio com um ar curioso o seu caderno como que a querer ler-lhe os pensamentos. Olhava para os olhos dele e para as suas lágrimas de chuva talvez a pensar em amor. Ele a sair do comboio saltando da carruagem ainda em andamento, depois já no carro a quase atropelar um cão por causa das lágrimas sobre o vidro mesmo antes do limpa-vidros passar pela segunda vez sobre as gotas no seu vidro da saudade. Ele a ir trabalhar porque era preciso trabalhar, tanta coisa por fazer e ele a barafustar por tudo quanto já tinha feito, a não ter tempo para si, para arrumar o seu cantinho, a sua cabeça e o seu mundo. A pegar no caderno para reler, com as gotas da saudade espalhadas na capa preta, molhado e encorrilhado como se de uma dor se tratasse. Ele a pousar o caderno, a ter que deixa-lo por causa do maldito emprego, logo ele que estava farto de trabalhar, sempre cansado e a esquecer-se de tudo. A esquecer-se do caderno que tinha a carta, a nunca mais encontra-la, sem tempo de a procurar, sempre a viver à pressa sem poder captar os acontecimentos, mas sempre a pensar que a vida estava uma merda, ou que era só pelo trabalho, por chegar tarde a casa e não descansar, sempre exausto por sair à noite com pessoas que não se divertiam nem o divertiam a ele. E mesmo ele, que saía sozinho para provar um provérbio popular, sempre a pensar nela, a pensar quando ela voltaria, e ela que voltava todos os dias mas só na sua imaginação.

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