terça-feira, maio 27, 2003

Auto-retrato

Não devias ter escrito na minha alma. Duas páginas de palavras bonitas, tantas letras e sinais, marcas que escreveste sobre a minha pele, deixaste cicatrizes profundas que eu sei serem indeléveis. Estou vestida com as tuas palavras e isso dói-me. Não posso sentir o meu corpo sem que pense em ti, sem que sinta que me queres. E tu sabes que eu também. E que não podemos. Quiseste que eu escrevesse uma outra história que fosse bonita e só nossa. Quiseste enganar o destino enviando-me uma carta. Só que, sabes, o destino não se deixa enganar. É ele que nos tem a todos presos, é ele que goza connosco. Tu sabes ser ele o teu dono. Querias tanto mudar o destino, e eu também, eu que te amo, que te quero e que não posso estar contigo. Nada é eu querer e tu quereres, sermos dois a querer e que todo o mundo se subjugará à nossa vontade. Tu páras, tu pensas, fazes planos, conjecturas, e resolves tudo. Só doçura e encanto no teu querer, nas tuas palavras acariciadoras, mas, tu sabes, as tuas caricias também doem quando fazem feridas no coração, os teus beijos apunhalam-me a alma de cada vez que nos amamos, e a entrega de nos amarmos é um desfalecer violento. Não reclamo do prazer que me dá, digo mesmo do imenso prazer que me dá. Só que para estar contigo tenho de fugir de tudo, de todas as minhas responsabilidades, de todos os meus laços, os meus filhos, o meu marido, a minha família, e é sempre tão mais fácil fugir só de ti. É esta criatura que eu sou, a beleza que tu vês é um invólucro que tu teimas em encher de beleza e que por amor, sim, por amor, eu sei, reinventas todos os dias. Eu queria ser o retrato mágico que tu fazes de mim, vestir-me toda com os teus adjectivos que me adornariam feita uma princesa. É que também eu te digo, é linda a pessoa que tu vês, mas só tu não te apercebes que não é real.

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