quinta-feira, maio 22, 2003

"Eu estava sentado como cordões impossíveis de dobrar e cordas tão grossas como anéis a prenderem-me como serpentes e caracóis. Eu tinha o choro e o beijo desajeitado de um encantamento de ourives a cravar ouro sobre nada. Tinha a angústia de cobertores enrolados em volta de uma cintura de pedra. Tinha ouvidos surdos que cegavam com calor gelado em frente dos olhos emudecidos. O meu corpo era sangue e sangue só o desespero roto e maltratado como a urgência de um hospital nojento. Chorava por nada como quem bebe um gole doce de depravação. E sentia em cima de mim um lençol a ranger como um corpo que se move como uma âncora aflita por se libertar. Tinha medo de fugir como quem emerge, medo de ficar como quem não se move. E ouvia os lençóis ranger como dentes tilintando ao frio. Como amor desfeito sobre corações de prata onde o mercúrio é somente um micróbio partido. E os lençois rangiam como noite sucedendo ao dia, fingindo ser loucura o quotidiano de origem enganosa. E sobre mim, como sobre o universo ainda a construir-se, o amor feito de pedra e gelo e engano e castigo; eu queria afundar e dizer não merecer. E eu queria como queria deixar de estar, sem poder deixar de ouvir a acústica bêbeda do amor. E será pouca essa dor que sabe como água insípida, lavada e deslavada, arrependida nessa tua cara desfeita de magia. Deixaste de ser lua e queres fugir à loucura de um dizer talvez. Como a lua se apaga quando os lençóis se murcham".
E dizem-me capaz de distorcer a realidade...

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