I - Na estação
A primeira vez que a vi foi de comprar uma revista no quiosque da estação de comboios quando voltava para casa. Ainda estava a meio das minhas férias e comprei uma revista para me actualizar. Há mais de uma semana que não sabia como andava o mundo. Ao desfolhar a revista eu vi-a, ela aparecia num anúncio e a beleza dos seus olhos castanhos claros brilhava perdida numa vaga inocência ainda mais sublinhada pelo seu rosto infantil. Não tinha mais de vinte anos, pensei eu. A vida é comum em coincidências e logo que tirei os olhos da revista e os voltei para o cais de embarque, ela estava à minha frente, mochila às costas, uma mochila pequena de couro preto encoberta pelos seus cabelos longos e finos, castanhos como os olhos. Vestia também uns jeans negros ajustados às suas pernas delgadas que acabavam nos ténis cinzentos, toda ela era uma figura esguia que parecia dançar. Cheguei-me junto a ela, abri a revista e perguntei-lhe se falava com a mesma pessoa, ela olhou-me com um sorriso feliz que rapidamente descobri ser originado pela música no seu Walkman, era por isso que ela parecia dançar, porque na realidade dançava. Fechou os olhos como se sonhasse, fiquei a observa-la; os seus lábios mexiam levemente como se pronunciasse timidamente sons, que tanto poderiam ser a letra como os instrumentos mas eu não percebia. Não podia me aperceber. Ela demorava a abrir os olhos e eu senti-me, subitamente, a fazer figura de estúpido, deslumbrado pela sua beleza singular. Voltei-me e sentei-me novamente no mesmo banco onde estivera. Abri a revista e continuei a perder-me no seu rosto, em todos os seus pormenores: nas sobrancelhas e no seu arco, o seu nariz pequeno, a curva sinuosa dos seu lábios grandes, mimados, carregados de poderosas imagens de ternura e mesmo assim êxtase, na sua pele de argila ocre tão brilhante que não duvidava de maneira nenhuma da sua suavidade de bebé. Gostei sobretudo do pormenor dos minimos três sinais que encimavam o lábio superior direito. Um requinte de malvadeza da natureza, mas que dava durabilidade à sua beleza.
- Sou mesmo eu, era isso que querias saber, não era?
Eu aquiesci. Ela sentara-se ao meu lado, tirara os auriculares dos ouvidos e cheirava a loção para bebé, daquelas frescas que me fazem lembrar os unguentos que a minha mãe me adornava depois do banho e dos jogos de futebol nos lamaçais.
- Peço-te desculpa, mas tinha de ouvir aquela música sem interrupções. faz-me sonhar, querer pular ou mesmo um voo em queda-livre. Acreditar que sou um pedaço de vento que beija ao de leve as coisas e depois parte; ou que, quando furioso, destrói tudo... e parte. Mas porquê que me foste falar, não me digas que ias fazer-me uma declaração de amor, os rapazes adoram fazer declarações, apaixonam-se por mim com uma facilidade de arrepiar, coleccionam fotografias minhas de todos os géneros. São tão engraçados. No outro dia um esbarrou-se contra mim porque vinha a correr e quando me olhou disse-me que estava apaixonado. Eu sei que é tudo mentira, porque o meu pai disse-me um dia quando reparou na quantidade de apaixonados que eu tinha, sim que eles telefonavam muito lá para casa e eu falava alto ao telefone para irritar o papá. O meu pai é muito filosófico, cheio de máximas, e disse-me que as pessoas estão é apaixonadas pela beleza e quando encontram algo belo redescobrem a paixão. É por isso que eu acho o meu pai cheio de piada, porque diz estas coisas com uma profundidade de arrepiar mas quase nunca tem razão, nem mesmo quando a minha mãe (...)
II - No Comboio
- (...) e então eu pude perceber como ele queria que as coisas fossem; tudo rotinizado, certo, exacto, previsto, mas que seca! É por isso que as coisas nunca podem durar com os rapazes, quer dizer, não é por nenhuma razão em especial, só que nunca podem funcionar, pedem muito, muitas coisas, querem que eu lhes dê tudo e quando eu digo não, como quando me pedem para ter relações com eles, porque eu digo sempre que não, porque eu sei que tenho o corpo que tenho e a beleza que tenho e que os deixo excitados. Eu sei que tenho um corpo bonito. Queres ver? Pagaram-me tanto para tirar estas fotografias de nu, foi quando o meu pai me expulsou de casa, mas depois o fotógrafo apaixonou-se perdidamente por mim, de tal maneira que fez as maiores loucuras do mundo para me conquistar: Desde encher-me a casa de flores até ter queimado todas as fotografias e negativos disto que estás a ver que foi despedido e arruinou a sua vida, eu pelo contrário, nunca devolvi o dinheiro até porque não tinha nada que o devolver, e como nunca foram impressas em revistas o meu pai reconsiderou e disse-me que podia voltar para casa, mas eu continuei a viver com o meu irmão mais velho que é impecável comigo apesar de ter ciúmes de todas as pessoas que se aproximam de mim, mas eu desculpo-o porque ele é a pessoa mais aventurosa que eu conheço e diverte-me o tempo todo. Só que agora arranjou uma namorada nova e foi passar férias com ela e deixou-me por ai. Eu então decidi partir pelo país fora porque gosto de conhecer coisas novas, embora as pessoas me achem fútil: os rapazes porque ficam estúpidos quando olham para mim e eu só me apetece disparatar para que eles achem isso mesmo; as raparigas porque são tão invejosas e destrutivas que inventam de tudo para me transformarem na pessoa mais desprezível deste mundo. E do outro se pudessem. Mas eu consigo sempre dar a volta por cima, acho que as pessoas são muito fáceis de ludibriar, mas é exactamente por isso que eu não o faço, porque é fácil e eu não gosto de (?)
III - Em minha casa
- (...) estás a ver porquê que eu não quis interromper esta música, ela faz-me voar, sentir-me uma criatura alada. Sabes qual era o meu sonho? Ser um cúpido, adorava incendiar tudo de paixão, o meu pai diz que eu sou uma alcoviteira, mas que para mim isso eu não quero, que não gosto de me apaixonar, que nem sequer gosto de dar beijos o que até é uma grande mentira.
De repente, paro de olhar para ela porque ela beija-me com os lábios fofos de gelatina e eu fecho os olhos. A língua dela é ágil e terna, mas antes mesmo de pensar se quero ou não beija-la, já estou excitado e com a sensação total de perda de conhecimento. Acaricio o seu corpo todo, centímetro a centímetro, saboreando a sua pele e sorvendo o seu perfume. O seu corpo nu é maravilhoso, a mais perfeita imagem de um ideal de beleza. Fizemos amor a noite inteira, acho eu, que ainda não percebi bem os acontecimentos. Parecia quase magia. Quando acordei no dia seguinte, ela desaparecera. Levara comida do frigorífico, depois de ter comido e arrumado tudo nos sitios, a loiça lavada, assim como o tinha feito na casa de banho, deixando apenas desarrumado o livro do Zola em cima da mesa da sala de jantar, e é por isso mesmo que eu lhe chamo Náná. Porque não tive oportunidade de saber o nome dela. Até fiquei com pena de não ter conversado um bocadinho mais com ela, para poder recordar também da sua voz.
Sem comentários:
Enviar um comentário