É a vida
Entre as calamidades que sorrateiramente a rodeavam, ela impunha-se. Por vezes via a sua vida como a mais dramática área de uma opereta. Um pouco menos de atenção e logo algum acidente ocorria. Tinha no corpo o perfeito mapa das suas vivências, as cicatrizes demonstravam situações ultrapassadas, sobrevivências alcançadas.
Podia ler-se a vida na sua pele, qual anel em tronco de árvore.
Achava graça à situação, ria sempre enquanto dizia que eram a sua melhor forma de datação. "Esta marca foi quando caí da bicicleta aos 8 anos com a minha prima!"
Tinha o olhar vivo de quem não pode deixar de estar atento, a graciosidade de quem anda sobre cristais, fruto da falta constante de equilibrio, e sorria sempre.
Um dia ia a atraversar uma rua e perdeu-se em pensamentos abstractos que sempre a assolavam, tinha visto alguém que conhecia, ou pelo menos assim pensava, e pôs-se a discurrer sobre a precariedade da nossa memória. Temos recordações de coisas insignificantes, enquanto outras que sempre qualificaramos de importantes se perdem na bruma da memória.
Nem reparou quando o carro guinou e tentou evitá-la, sentiu o impacto, a sensação de perder o contacto com o solo e ficar desamparada no ar. O calor da acção com toda reacção corporal ao acontecimento faziam que quase não sentisse dor, estava estranhamente calma e só pensava em quem seriam aquelas pessoas que começavam agora a juntar-se à sua volta. Continuava a sorrir e sentia que todo o corpo, agora que os minutos passavam, começava a doer, eram ossos partidos, pele rasgada, sangue. O que mais lhe estava a doer eram mesmo as partes do corpo esfoladas do contacto com o asfalto, o resto achava que até era suportável. Pensou num instante como estava a ser idiota, ali deitada num estado lamentável e a pensar que até nem estava a sofrer dores tão torcidantes como esperava. Soltou uma leve gargalhada que aumentou muito a dor que começava a crescer. Os transeuntes inundavam-na de perguntas que não queria, nem lhe apetecia responder, só queria estar sossegada, em paz. Foi sendo assaltada pela recordação de um dia na quinta da avó, em que corria para os campos de milho e se perdia por lá. Sentia a vida a esfiar-se, a sua respiração foi ficando mais pausada, mais lenta, sempre a decrescer no ritmo. Não sentia dor neste momento, só sentia a vida a esfumar-se. Pensou em sorrir uma vez mais mas não foi capaz, ficou triste porque a sua face ficaria para sempre com o esboço de um sorriso e não com o franco e aberto a que todos habituara. Deixou de respirar.
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