Lara
Tinha três anos quando me encontrou embrulhado num manto de lã ao xadrez castanho com tiras cor de mel e uma muito fina de um vermelho velho e pálido. Reparou que eu tinha os olhos muito azuis tão claros como o céu no melhor dia de verão e pensou logo que eu seria o amor da sua vida. Foi isto o que me disse catorze anos depois. Foi nessa altura, e não tinha eu ainda quinze anos, que me apercebi o que era sofrer da tentação feminina. Tínhamos sido criados como irmão, diziam. Mas lá em casa ninguém se tinha apercebido disso. A minha mãe adoptiva, que eu adoptei por imposição, chamou-me Sebastião. Não por ter aparecido entre dois abetos muito verdes e eu, com os meus olhitos muito azuis, a fazer-me ver por entre o nevoeiro, como eu cheguei a pensar um dia numa aula de história, mas porque o irmão da minha mãe adoptiva tinha falecido um ano antes de eu ser encontrado entre a verdura dos abetos no parque infantil e também se chamava Sebastião. Foi quando soube desta história que finalmente percebi o arrebatamento que lhe tinha assomado o coração no momento que me encontrou. Adoptou-me de facto durante duas semanas, até que os meus olhos azuis começaram a fazer-lhe confusão no meio daqueles olhares castanhos e baços do resto da família. Excepto os de Lara. Lara tinha os olhos negros, a pele mestiça, macia e sorridente como um ursinho de pelúcia. Era muito estranho isso da cor da pele da Lara já que o resto da família tinha a pele tão branquinha. Até cheguei a perguntar ao meu pai adoptivo se a Lara também tinha sido encontrada. O meu pai adoptivo só me disse que a Lara era uma filha da mãe, coisa que mesmo na minha idade, tinha eu oito anos, já sabia que era um insulto e facilmente percebi que era devido às travessuras que ela fazia. A minha Lara. Uma noite de verão como tantas outras que eu vivi, eu e a Lara fugimos, não por uma aventura romântica com o luar a banhar os nossos corpos fugidos, mas porque o meu pai adoptivo chegou a casa uns cinco copos de bagaço bem servidos mais aceso do que o costume, e desatou aos tabefes e pontapés aos outros branquelas da família a perguntar pela negra, que eu imaginei logo ser a Lara, e ela, que ficou imóvel apenas a tilintar de medo como se estivesse com frio. Metido a héroi de histórias que já tinha ouvido contar, dei-lhe a mão e foi pela porta dos fundos da cozinha que saímos. Eu com os meus olhitos muito azuis a alumiar a estrada escura toda ela feita de noite, e foi com eles e com as mãos dadas de Lara que descobrimos um celeiro com a porta aberta como se anunciasse uma salvação, lá do outro lado da aldeia e aí nos abrigamos. Demoramos mais de um dia a ser encontrados e foi durante esse tempo que a Lara me contou pormenores da minha infância que eu não sabia, e que, embora ela fosse muito nova para saber ou perceber, eu acreditava porque ela tinha muita imaginação. Foi nesse celeiro escuro com um odor seco a verão e a mofo de feno que a Lara me disse que eu era o amor da vida dela e como ela soube logo disso. Ficou a olhar para mim e eu percebi como eram negros e inteligentes os seus olhos, com a sua corzinha de café com leite e fofa feita o meu ursinho de pelúcia que ganhei numa feira. Na verdade roubei, mas contei a todos que um senhor velhinho e simpático me ofereceu. Tinha cinco anos e aprendia a fazer estas coisas com a filha da mãe da Lara. A ela não menti. A ela não lhe mentia eu. A minha Lara. Aos cinco anos já me dizia que não éramos irmãos, que eu não tinha irmãos, que eu não tinha pais, que nunca tinha tido pais, que ela me tinha encontrado a rir pelos olhos azuis no meio do nevoeiro metido entre os abetos que tilintavam como sininhos de embalar, que eu não tivesse medo porque eu tinha a Lara. Foi assim que nos tornámos inseparáveis. Estas coisas todas que eu não recordo da minha infância, foram sempre contadas pela Lara, que sabia de tudo, que tinha visto tudo com aqueles olhinhos negros que ficam com tudo o que vêem e por isso eles são negros como os buracos cósmicos. Esta aprendi eu numa aula de física. E foi nesse dia que aprendi que os meus, por serem tão azuis e tão límpidos nunca apanhavam nada por muito que vissem. Foi assim que passei a acreditar em Lara e só em Lara. Ela tinha a verdade do Universo nos olhos. Porque só Lara ficava com tudo o que via. Lara, a mestiça, foi encontrada e sovada e ficou três dias de cama. Eu fiquei de castigo sem comer durante dois dias, o que até não era grande castigo porque já estava habituado. Lara, a mestiça, foi encontrada porque ninguém a queria nas suas casas. Acho que era por causa daquela corzinha de café acabado de fazer e dissolvido no leite, coisa que quando havia lá em casa eu adorava beber. Mas nunca perguntei se eu tinha ou não razão. Esperava que Lara me dissesse, os olhos de Lara que viam tudo, haviam de ver isso por mim. De qualquer maneira, eu estava de castigo e também não podia falar. Chegaram as festas do santo devoto da freguesia vizinha e os branquelas como eu, só que sem olhos azuis, foram embora sete dias que contei-os eu, embora a Lara dissesse que tinham ido uma semana, que tinha-lhe dito a mãe dela. A mim e à Lara deixaram-nos comida para comer dia não/sim, o que dava-nos para comer três em sete dias, o que se podia considerar um luxo em certas épocas que, segundo os olhos de Lara, aconteciam na exacta altura em que o meu pai adoptivo chegava mais vezes aceso a casa. E lá ficamos nós, trancados em casa e sem poder sair porque os vizinhos não podiam imaginar que nos tinham deixado sozinhos, nós que éramos menores, coisa que era fácil de perceber mesmo para um rapazito de olhos azuis como eu. Pelo menos essa coisa de sermos menores, pelo menos eu, que dava pelo queixo da Lara. O queixo da Lara, as mão da Lara, as pernas da Lara, os seios da Lara… sim, foi nesses sete dias que eu vi Lara nua e percebi o que era uma mulher. Creio que nesse dia os meus olhos ficaram um pouco mais escuros porque nunca me esqueci do corpo chocolate da Lara. Tinha quinze anos menos dois dias, mais os seis meses aproximados que ninguém sabia ao certo se eu tinha. Tinha portanto uma idade aproximada de quinze anos e meio. Era uma equação, termo matemático que aprendi numa aula, difícil de fazer mas que eu já fazia com à-vontade de tantas vezes me perguntarem a idade, e em que eu, sempre a evitar mostrar a minha ignorância, respondia em valores aproximados o que fazia rir as pessoas. A Lara disse-me, com a sabedoria dos seus olhinhos inteligentes de tão negros, para eu não ligar e eu nunca mais liguei. Fazia tudo o que ela me dizia só para me sentir um filho da mãe como ela. Nos três anos seguintes o que fiz, tudo o que fiz foi apaixonar-me pela Lara. A minha Lara do sorriso de luz, tão branco no meio daquele corpo doce de chocolate. Uma noite eu dei a mão a Lara metido a heroi de outrora, e pela porta dos fundos da cozinha, com os olhinhos abertos a iluminar mais do que o luar a noite, corremos os dois em silêncio para não despertar os branquelas ressonadores e deitamo-nos os dois outra vez no celeiro. Eu de olhos fechados para não acordar Lara, e Lara a ver tudo, as estrelas e a lua e a dizer-me como aquilo era tão bonito com aquele cheiro seco a feno e o odor quente da terra de verão. Tinha a idade aproximada de dezoito anos e meio e tudo começou a fazer sentido, isso de eu ser o amor da vida dela e ela ser o amor da minha. Tudo isso fez sentido quando misturamos os nossos corpos como quando o café se misturava no leite na refeição da manhã. A minha Lara de pelúcia. Como da vez que fugimos quando o meu pai adoptivo se acendeu demasiado, fomos encontrados. Não como viemos ao mundo, não, que eu vim ao mundo envolto num manto de lã ao xadrez castanho com tiras cor de mel e uma muito fina de um vermelho velho e pálido. Meteram-nos fora de casa porque éramos dois irmãos incestuosos. A princípio ficamos apreensivos, mas depois a Lara, com os seus olhinhos negros de inteligência, rasgou um sorriso ainda mais filho da mãe do que os outros e disse-me num falso desconsolo: Agora que nos consideram parte da família é que nos põem de cá para fora. Eu pensei que a Lara era mesmo filha da mãe, e tudo o que eu sempre quis foi ser isso mesmo.
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