sexta-feira, junho 27, 2003

As tascas

Disseste que acabavas com tudo e que me deixavas. Fui-me embora sem ouvir mais nada, nem mais uma desculpa ou um porquê teu. Tu ainda chamaste por mim, mas eu segui por uma vida nova, nova e sem ti. Havia de ser assim e assim segui decidido. Parei num bar nesse primeiro dia, ali perto de onde me deixaste. Durante uma semana iam-me lá buscar. Eu embriagado com a cabeça contra a mesa, a tentar adormecer um pesadelo que não me deixava acordar.

Como eras a minha vida parecia que eu não tinha outra.

Tanto me chatearam sobre esta minha nova vida, sobre esta vida que eu vivia sem grande vontade, que me transladei para um café bem perto de minha casa. Durante uma segunda semana mais do que inteira, foi o filho do dono que me levava a casa em ombros. Tinha tratado com ele e assim ficou tratado, eu embebedava-me no bar dele e ele levava-me a casa.

Já ninguém me visitava e até parecia que não tinha casa.

Um dia, sem semana marcada nesta nova vida, uma rapariga embriagada como eu, talvez ferida de um amor desfeito como o que eu tinha, adormeceu sobre o meu ombro e por ele escorregou. Segurei-lhe o queixo, gritei-lhe ao ouvido, esbofeteei-lhe a face. Lá abriu um olho e apelidou-me de goelas. Mas nem vale a pena querer saber porquê.

Foi para tratar dela que a vida me manteve sóbrio, ou para morrer.

Metia-a em casa dela, em casa na sala, da sala para o quarto, no quarto para a cama. Pedia-me sempre para a mudar de sítio, para pô-la noutro lugar. Só queria mesmo era mudar. Quando se está mal, tudo está mal, ou mesmo muito fora de sítio.

Não dormia vestida disse-me, de qualquer maneira eu tinha-a despido.

Os dois na cama de edredão azul marinho, eu por baixo dos lençóis vestido e a tilintar de frio, e ela por cima toda nua a gritar que tinha calor. Era uma situação tão rara e tão pouco sexual ou sensual, que adormecer foi a única coisa que me foi possível fazer. Percorremos a noite toda nesse silêncio do sono e na agitação dos sonhos ébrios e toscos.

Há conversas que não se têm nem na mais doida ressaca.

Quando acordou e se olhou toda nua, nem um ai de admiração pronunciou. Ficou quieta a olhar para mim até eu a questionar. Que foi, nunca viste ninguém a ressacar? Perguntou-me porquê que eu não tomava conta dela, dela e da vida dela para aumentar ainda mais o fardo. Respondi-lhe à pressa e sem pensar que já estava cansado de ser largado, que já tinha tido a minha overdose. Riu-se imenso, meteu-me dentro da cama, contra a sua pele toda fria.

Disse claro que te largo também, mas entretanto, porquê que não podemos ir ficando os dois?

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