quinta-feira, junho 19, 2003

A dança de Vera

Foi assim que eu conheci Vera, com a minha mão a fazer cócegas na dela. O sorriso a desprender-se dos cabelos vermelhos de Vera mas as mãos sempre dadas. Não largava os olhos da profundidade ansiosa de ser descoberta pelos meus. Era a minha alma que falava pelo corredor estreito dos nossos dedos entrelaçados. Os olhos amêndoa de Vera que brilhavam na inconstância do momento, o seu corpo delgado e muito bonito que surgia entre os fumos da discoteca, rodopiando em torno da minha mão sem se desprender dela. Vera e eu agarrados, mais do que mãos dadas. Éramos almas siamesas que dormiam juntas, sem se tocarem, mas já de si fundidas. Vera dizia que o amor devia ser assim. Era a minha mão a agarrar a vida de Vera, a fazer dela a minha vida.

Vera dizia-me que aquilo que estava mais perto de se parecer com o seu maior desejo era o amor. Era isso que me atraia a ela. O amor também não me chegava. Mas não havia nehuma outra palavra que pudesse significar o meu maior desejo. Aquilo que era parecido com o meu maior desejo era Vera.

Foi por este tipo de pensamentos que eu e Vera ficamos mais de duas horas encostados ao balcão a falar das palavras que nunca davam jeito porque nunca significavam aquilo que era o nosso mundo. Nosso, mesmo nosso, porque parecia que os outros não existiam. Esse mundo que era só nosso. Nós no balcão do nosso bar, com o nosso empregado que parecia estar ali só para nos servir a nós. Ficou um sentimento de posse tão grande no ar, que a ideia de que eu a queria só para mim me expulsou do bar e dos olhos inundados de magia de Vera.

Vera dançava muito bem o tango. Era verdade. Mesmo que eu nunca tivesse dançado o tango com Vera, ou mesmo que a tivesse visto dançar. Se Vera dizia, era porque era verdade, e as almas que brilham como Vera falam sempre a verdade. Quando dancei com Vera, com as mão presas a servir de âncora a uma relação que galopava ao sabor dos ventos imparáveis dos tornados, percebi que era verdade. Foi assim que eu conheci Vera. Com a minha mão dada a dela, a fazer-lhe cócegas nos olhinhos amêndoa.

Vera sonhava muito. Dizia-me ela. E eu só podia acreditar. Sonhos que se fazem acordado e outros que se têm a dormir. Os sonhos geralmente são quimeras mas Vera tinha-os práticos. A maior parte deles satisfaziam-se rapidamente e sem grande trabalho, às vezes, era só preciso ir a um supermercado. Mas a maneira como Vera falava dos seus sonhos tornava-os mágicos. Era verdade. Havia algo de mágico no querer de Vera.

Vera dançava imparável no meio da pista como o vento sem obstáculos numa planície quente. Eu encostei-me ao balcão sem o peso âncora da mão de Vera. Parecia flutuar numa das muitas nuvens de fumo à minha volta. Estava a um passo de mergulhar na loucura arrepiante do mundo Vera. Era paixão, sussurrava um dos muitos anjos que me circundavam. Ou voltava para a mão de riso de Vera ou fugia. Fugir de medo. Fugir por ter medo de deixar de ter controlo. Fugir por ser incapaz de resistir.

Foi assim a ultima vez que vi Vera. A dançar com o seu corpo delgado e bonito, fazendo reluzir o cabelo vermelho por entre os fumos da discoteca. A mão sozinha esperando pela minha, mas ainda cheia de ternura. Os olhinhos ainda a rirem. Assim era Vera.

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