sexta-feira, dezembro 05, 2003

Odisseia: a um ou outro amor não consagrado

I
à saida do cais, procurando a bolina, o barco partiu sem saber que partia nem ele queria acredita-lo; amor acabado amor começado. no outono do seu coração começava uma nova étapa, neste novo inverno - que era essa a estação - dava-se o início da tempestade, um novo amor a acreditar. vieram ventos suaves, apenas o pricípio, só mais tarde em alto mar, o buliço. e no seu coração zumbia ainda a malícia, ainda se lhe recordava na boca da memória a boca amada hexagonalmente beijada; nessa altura de nevoeiros quando as paixões se sobrepunham como duas imagens transparentes, o leme do seu coração desgovernava-se e parecia voar como as aves planando ao sabor do vento das paixões. não tinha medo, estava distraído nessa sua ignorância que era só sua, pois era ele o seu próprio ventre. a preocupação estava arredia e até parecia brilhar um grande raio de sol que funcionava como um farol evitando-lhe o tremendo embate nas costas duras da desilusão. era um grande mar, um mar grande de paixões e muita água ainda não descoberta

II
o tempo traz sempre erros. e este tempo foi como todos os outro tempos, não um pequeno tempo apenas um grande temporal. na sua ignorância, no seu desprendimento, não soube ler os mapas, traçar rotas seguras. era um mau marinheiro para um mar tão traiçoeiro. e assim, na sua ingenuidade de infante, julgou possível a conquista do primeiro estreito, julgou possível passar de permeio entre as margens da sedução e da conquista. e ao tentar aportar, foi embater na margem pontiaguda da sedução e não foi possível evitar o rasgão do casco. a água começou a entrar e por pouco o navio não se afundou. foi preciso sangue frio, trabalho árduo, temperança, paciência e esperança mas isso foi fatal, nunca mais ele se podia afastar dessa costa espinhosa e imprevisível da sedução e só de longe podia espreitar a outra margem

III
Mas como herói destemido fingiu não ouvir as vozes amigas dos golfinhos que o feriam na sua linguagem e cantavam-lhe cantigas de amores impossíveis. ele passava por cima desses avisos como um gigante por cima das formigas e continuava a amar o seu amor, tratava dele como um louco germina a semente da loucura

IV
um dia, um belo dia de inverno, fez-se tanta luz dentro de si que olhou para o sol e sentiu-o todo dentro dos seus olhos. essa sensação de envolvimento deu-lhe coragem, o seu coração encheu-se tanto de paixão que a própria palavra da paixão lhe saiu da boca e da sua boca direitinha aos ouvidos da sereia que ele amava. ela corou até ficar um botão de rosa para acabar a mergulhar no mar onde sempre se protegia. quando olhou para a superfície do mar e o viu a borbulhar sentiu-se triste e sentiu-se alegre, no mesmo tom em que ela se sentia alegre e se sentia triste. ela demorou muito tempo a vir à superfície, tanto tempo ela demorou que o mar que ele olhava lhe passou para os olhos até eles se transformarem em aquários

V
quando ela voltou à superfície, passava o tempo a brincar com as outras sereias, nadava velozmente fazendo coreografias risonhas com os seus lábios risonhos. ele postrava-se no mastro o tempo todo, tomara o lugar de vigia agora que o seu barco estava ancorado, abraçado na margem da sedução; imóvel e perene, ele, no lugar de vigia, divertia-se longamente com o seu olhar apaixonado rindo-se das coreografias traquinas das ninfas até que começou a reparar que de tempos em tempos imprevistos quando ela se encontrava lá longe, quando ela o julgava distraído, os seus olhos fitavam-no como que observando-o. ele cada vez mais fingia estar distraído e lentamente, como quem tem medo, ela foi-se aproximando. aproximando-se dele e do amor que ela desconfiava

VI
tantas luas ele viu no seu mastro de vigia, tantos dias se deitaram sobre a noite sem ela lhe dar um sinal que fosse que o tédio e a tristeza nostálgica dos dias nublados capturaram-lhe o semblante cinzento. ele desceu ao convés do seu navio e tentou manobra-lo mas ele não se moveu. ele não se moveu porque continuava agarrado às margens pontiagudas da sedução. ele sentiu-se condenado, sentiu-se condenado a viver ali, naquele local, continuamente a olhar de longe a margem da conquista mas, sentindo-se outra vez herói destemido, deitou-se ao mar e com braçadas de luz tentou escapar daquele estreito de amor que cada vez parecia mais triste e feio. os seus amigos golfinhos que eram cor-de-rosa como uma bela boca de dentes brancos, cantavam-lhe canções de encorajamento. as canções faziam-no sorrir e cada vez sentia-se mais forte e sentiu-se afastar daquele estreito de amor que se tornara triste

VII
passara a noite iluminando o seu caminho com braçadas de luz. já ele tinha percorrido mais de metade do caminho. nessa noite, ela disse às suas companheiras que ele lhe era indiferente. parecia estar tudo bem no estreito do amor mas como amor é magia e não há magia sem amor encontraram-se sem saber como em mar-alto. fazia a lua no céu um sorriso brilhante como luar e naquele cinzento que era o mar nocturno havia brilhos de prata que mais não eram que bocadinhos da ternura que existia nos olhares tanto de um como de outro. havia um bem-estar inefável que sobrevoava todo o estreito. os golfinhos e as sereias fitavam-nos, uns desconfiados outros contentes. estavam todos aturdidos naquela ilusão

VIII
sem saber como, sem ter feito esforço algum, o esforço que ele fizera em braçadas de luz parecia não ter tido qualquer efeito e ele encontrava-se de novo no navio, de novo ancorado junto à margem da sedução. e no seu mastro de vigia, ele passava o tempo a recordar, uma só noite na ilha da conquista

IX
ela continuava temerosamente junto às suas companheiras mas novamente, de tempos em tempos imprevistos, ela nadava no seu jeito ondulante de sereia como uma elegante serpente. aproximava-se do navio e lançava-lhe um sorriso. era assim que ela evitava que naquele estreito de amor, as núvens cinzentas e espessas da tristeza fizessem ali a sua paragem. no fim daquele sorriso, mais depressa do que viera partia no seu ondular tímido. ele habituara-se àquela vida de cárcere e não mais se entristeceu

X
as imagens que ele tinha dela eram constantemente recicladas, cada vez mais bela ela lhe parecia, as palavras dela tinham um som especial e tudo nela ele amava. foi quando ele lhe deu um presente, um presente de amor, palavras... palavras desse amor

XI
a essas palavras nunca conheceu bem a sua reacção por muito que lhe perguntasse. ela mergulhava no mar onde se protegia e a água da superfície voltava a borbulhar. ele nunca esperou nada dessas palavras que lhe deu e foi esse mesmo nada que dela recebeu. até que lhe começou a dar ciúme, atitudes mesquinhas, atitudes contraditórias, palavras confusas e sempre muito medo no seu silêncio. o mar azul onde se protegia escureceu e uma força giratória circundava-ª. A princípio era invisível mas ela não pode evitar que ele visse o remoinho. que se construira ao seu redor

XII
aquele remoinho tornara o mar agitado. já não era seguro aquele navio ancorado na sedução e mais uma vez ele lançou-se ao mar. só um marinheiro louco se lança num mar que parece querer engolir tudo à sua volta. insanamente ele foi apanhado naquel vórtice, a sua cabeça embateu milhares de vezes em rochas, ou em animais grotescos. e de tantas vezes embater, desfaleceu. quando recuperou os sentidos, pela manhã, tinha o sorriso congelado e lágrimas petrificadas no rosto. julgou-se morto pois sentia-se muito bem, sem peso, sem matéria mas à medida que ia acordando, e revisitando todos os pequenos episódios que ele viu durante o remoinho, julgou-se mesmo morto. mas afinal estava vivo, vivo como morto. primeiro limpou o sorriso, era o sorriso que tinha ficado que ele tinha aprendido naqueles momentos em que mais uma vez este com ela na ilha da conquista. depois, a lágrima, que era apenas um símbolo da traição. traição sem haver traído; era apenas o símbolo da amargura. era vermelha como o sangue jorrado num apunhalamento

XIII
quando ele começou a caminhar, a margem da sedução estava desfeita. tinha crateras enormes cobertas até cima de um líquido negro oleoso, cheia de bichos assustadores. a ilha da conquista era apenas um montículo onde duas pessoas mal se podiam equilibrar. e a toda a volta, só mar. só um mar alaranjado com grandes manchas vermelhas. e por todo ele, borbulhas donde saia um vapor muito quente. aquilo fervia e parecia querer possuir tudo à sua volta. havia uma pequena ilha entre a margem da sedução - quase desfeita, entre a ilha da conquista - quase inexistente. nesta ilha inominável morava a sereia amada

XIV
como no amor há magia e magia há só com amor. mais uma vez eles se encontraram talvez em sonho ou uma reminiscência desse estreito de amor que existiu. mas como era difícil o equilíbrio naquele pequeno montículo e como ele parecia uma terra de pântano, todo o monte foi engolido pelo mar laranja e vermelho. esse mar que queria engolir tudo, esse mar que muitos só lhe dão um nome, e um só nome se lhe pode dar, desilusão...

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